27 agosto 2006

Amanda Oliveira

Que morram

Que morram as palavras
Que esmaguem os sonhos
Que retalhem os apelos
E se matem os devaneios

Que estrangulem os planos
Que enforquem os carinhos
Que esfaqueiem os cuidados
E se matem os desenganos

Que desfaleçam as esperanças
Que pisoteiem as lembranças
Que sufoquem os instintos
E se matem os destinos

Que se esqueça com a morte...

23 agosto 2006

Elege Wiesel



"O oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença."

Charles Baudelaire

Tradução: Teófilo Dias
O Espectro


Como espectro agoureiro, hei de, escondido,
Entrar na tua alcova silenciosa,
Deslizando sinistro, sem ruído,
Com as sombras da noite pavorosa.

E a tua branca espádua hei de afagar,
Como a serpente a pedra de um sepulcro,
E hei de imprimir-te ao corpo esbelto e pulcro
Os meus beijos, mais frios que o luar.

Ao repontar a lívida alvorada,
Encontrarás o meu lugar vazio,
E hás de senti-lo abandonado e frio,
Até surgir a noite, ó minha amada.

Sôbre a tua atraente formosura,
E a tua bela mocidade em flor,
Como os outros, mulher, pela ternura,
Eu quero dominar pelo terror!

Bertolt Brecht


A EXCEÇÃO E A REGRA

Estranhem o que não for estranho.
Tomem por inexplicável o habitual.
Sintam-se perplexos ante o cotidiano.
Tratem de achar um remédio para o abuso.
Mas não se esqueçam
de que o abuso é sempre a regra
.

Ana Cristina César

Foto: Álbum de Família

SAMBA CANÇÃO


Tantos poemas que perdi,
Tantos que ouvi, de graça
pelo telefone - taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...

22 agosto 2006

Jonh Lennon


A VIDA É AQUILO QUE ACONTECE ENQUANTO VOCÊ FAZ PLANOS.

João Ubaldo Ribeiro

Foto de Paulo Teixeira

O melhor do futuro é que não estarei nele.


Ferreira Gullar



Posso fazer dez poemas por dia, porque eu sei fazer. Mas nunca farei isso. Eu sempre fui assim, sempre escrevi o poema necessário.

Bob Marley



Enquanto a cor da pele
for mais importante que o brilho dos olhos,
haverá guerra.

Falcão

Filosofia

Toda pessoa
tem um pouco de
gente.

Alice Ruiz







Presente de vênus
primeira estrela que vejo
satisfaça o meu desejo

(HAI TROPIKAI - 1985)

21 agosto 2006

Arnaldo Antunes



Os Peitos


Mulheres

têm dois

peitos. Os

homens têm

um peito só.

Carlos Drummond de Andrade

A língua girava no céu da boca

A língua girava no céu da boca. Girava! Eram duas bocas, no céu único.

O sexo desprendera-se de sua fundação, errante imprimia-nos seus traços de cobre. Eu, ela, elaeu.

Os dois nos movíamos possuídos, trespassados, eleu. A posse não resultava de ação e doação, nem nos somava. Consumia-nos em piscina de aniquilamento. Soltos, fálus e vulva no espaço cristalino, vulva e fálus em fogo, em núpcia, emancipados de nós.

A custo nossos corpos, içados do gelatinoso jazigo, se restituíram à consciência. O sexo reintegrou-se. A vida repontou: a vida menor.


Extraído do livro "O amor natural", Editora Record – RJ, 1992, pág. 29.

Bocage



O Cão e a Cadela
Em verso alexandrino


Tinha de uma cadela um cão fome canina,
Ele bom perdigueiro, ela de casta fina:
Mil foscas lhe fazia o terno maganão,
Mas gastava o seu tempo, o seu carinho em
vão.
Dando no chichisbéu dentada e mais dentada,
A fêmea parecia um cadela honrada
E incapaz de ceder às pretensões de amor.
Mas o amante infeliz foi sabedor
De que a mesma, em que via ações tão
desabridas,
Era co'um torpe cão fagueira às
escondidas.
Se és sagaz, meu leitor, talvez tenhas visto
Cadelas de dois pés, que também fazem

isto.

Bezerra da Silva

Composição: Popular P. / Moacir Bombeiro / Adelzonilton


Malandragem Dá Um Tempo

Vou apertar, mas não vou acender agora
Vou apertar, mas não vou acender agora
Se segura malandro, pra fazer a cabeça tem hora
Se segura malandro, pra fazer a cabeça tem hora

É que você não está vendo
Que a boca tá assim de corujão
Tem dedo de seta adoidado
Todos eles afim de entregar os irmãos
Malandragem dá um tempo
Deixa essa pá de sujeira ir embora
É por isso que eu vou apertar, mas não vou acender agora

É que o 281 foi afastado
O 16 e o 12 no lugar ficou
E uma muvuca de espertos demais
Deu mole e o bicho pegou
Quando os home da lei grampeiam
O coro come a toda hora
É por isso que eu vou apertar, mas não vou acender agora

É que você não está vendo
Que a boca tá assim de corujão
Fio desencapado adoidado
Todos eles afim de entregar os irmãos
Malandragem dá um tempo
Deixa essa pá de safado ir embora
É por isso que eu vou apertar, mas não vou acender agora.

Renato Russo


Meninos e Meninas


Quero me encontrar mas não sei onde estou
Vem comigo procurar algum lugar mais calmo
Longe dessa confusão
E dessa gente que não se respeita
Tenho quase certeza que eu
Não sou daqui.

Acho que gosto de S. Paulo
E gosto de S. João
Gosto de S. Francisco
E S. Sebastião
E eu gosto de meninos e meninas.

Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim pra sempre
Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente
Estou cansado de bater e ninguém abrir
Você me deixou sentindo tanto frio
Não sei mais o que dizer.

Te fiz comida
Velei teu sono
Fui teu amigo
Te levei comigo e me diz:
Pra mim o que é que ficou?

Me deixa ver como viver é bom
Não é a vida como está e sim as coisas como são
Você não quis tentar me ajudar
Então a culpa é de quem?
A culpa é de quem?

Eu canto em português errado
Acho que o imperfeito não participa do passado
Troco as pessoas
Troco os pronomes.

Preciso de oxigênio
Preciso ter amigos
Preciso ter dinheiro
Preciso de carinho
Acho que te amava
Agora acho que te odeio
São tudo pequenas coisas
E tudo deve passar.

Acho que gosto de S. Paulo
E gosto de S. João
Gosto de S. Francisco
E S. Sebastião
E eu gosto de meninos e meninas.


Hilda Hilst


Alcoólicas

É crua a vida. Alça de tripa e metal.

Nela despenco: pedra mórula ferida.

É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.

Como-a no livor da língua

Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me

No estreito-pouco

Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida

Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.

E perambulamos de coturno pela rua

Rubras, góticas, altas de corpo e copos.

A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.

E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima

Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.

(Alcoólicas - I)

* * *

Também são cruas e duras as palavras e as caras

Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida

Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos

Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes

Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos

Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas

De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo

Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas

Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento

Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte

É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.

Sussurras: ah, a vida é líquida.

(Alcoólicas - II)

* * *

E bebendo, Vida, recusamos o sólido

O nodoso, a friez-armadilha

De algum rosto sóbrio, certa voz

Que se amplia, certo olhar que condena

O nosso olhar gasoso: então, bebendo?

E respondemos lassas lérias letícias

O lusco das lagartixas, o lustrino

Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos

E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.

Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me

Na noite navegada, e rio, rio, e remendo

Meu casaco rosso tecido de açucena.

Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.

(Alcoólicas - IV)

* * *

Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito

Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado

Salpicado de negro, de doçuras e iras.

Te amo, Líquida, descendo escorrida

Pela víscera, e assim esquecendo

Fomes

País

O riso solto

A dentadura etérea

Bola

Miséria.

Bebendo, Vida, invento casa, comida

E um Mais que se agiganta, um Mais

Conquistando um fulcro potente na garganta

Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.

Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos

Quando não sou líquida.

(Alcoólicas - V)

(in Do Desejo - Campinas, SP: Pontes, 1992.)

Paulo Leminski



-- que tudo se foda,
disse ela,
e se fodeu toda


Ricardo Kelmer
















A mulher selvagem


Sua beleza é arisca, arredia aos modismos. Ela encanta por um não-sei-quê indefinível... mas que também agride o olhar. É um tipo raro e não tem habitat definido: vive em Catmandu, mora no prédio ao lado ou se mudou ontem para Barroquinha. E não deixou o endereço. É ela, a mulher selvagem.

Em quase tudo ela é uma mulher comum: pega metrô lotado, aproveita as promoções, bota o lixo para fora e tem dia que desiste de sair porque se acha um trapo. Porém em tudo que faz exala um frescor de liberdade. E também dá arrepios: você tem a impressão que viu uma loba na espreita. Você se assusta, olha de novo... e quem está ali é a mulher doce e simpática, ajeitando dengosa o cabelo, quase uma menininha. Mas por um segundo você viu a loba, viu sim. É a mulher selvagem.

A sociedade tenta mas não pode domesticá-la, ela se esquiva das regras. Quando você pensa que capturou, escapole feito água entre os dedos. Quando pensa que finalmente a conhece, ela surpreende outra vez. Tem a alma livre e só se submete quando quer. Por isso escolhe seus parceiros entre os que cultuam a liberdade. E como os reconhece? Como toda loba, pelo cheiro, por isso é bom não abusar de perfumes. Seu movimento tem graça, o olhar destila uma sensualidade natural - mas, cuidado, não vá passando a mão. Ela é um bicho, não esqueça. Gosta de afago mas também arranha.

Repare que há sempre uma mecha teimosa de cabelo: é o espírito selvagem que sopra em sua alma a refrescante sensação de estar unida à Terra. É daí que vem sua beleza e força. E sua sabedoria instintiva. Sim, ela é sábia pois está em harmonia com os ritmos da Natureza. Por isso conhece a si mesma, sabe dos seus ciclos de crescimento e não sabota a própria felicidade. Como todo bicho ela respeita seu corpo mas nem sempre resiste às guloseimas. Riponga do mato, gabriela brejeira? Não necessariamente, a maioria vive na cidade. E há dias paquera aquele pretinho básico da vitrine. E adora dançar em noite de lua. Ah, então é uma bruxa... Talvez, ela não liga para rótulos. Sabe que a imensidão do ser não cabe nas definições.
Mulheres gostam de fazer mistério. Ela não, ela é o mistério. Por uma razão simples: a mulher selvagem sabe que a vida é uma coisa assombrosa e perfeita, e viver o mais sagrado dos rituais. Ela sente as estações e se movimenta de acordo com os ventos, rindo da chuva e chorando com os rios que morrem. Coleciona pedrinhas, fala com plantas e de uma hora para outra quer ficar só, não insista. Não, ela não é uma esotérica deslumbrada mas vive se deslumbrando: com as heroínas dos filmes, aquela livraria nova, o CD do fulano... Ela se apaixona, sonha acordada e tem insônia por amor. As injustiças do mundo a angustiam mas ela respira fundo e renova sua fé na humanidade. Luta todos os dias por seus sonhos, adormece em meio a perguntas sem respostas e desperta com o sussurro das manhãs em seu ouvido, mais um dia perfeito para celebrar o imenso mistério de estar vivo.

Ela equilibra em si cultura e natureza, movendo-se bela e poética entre os dois extremos da humana condição. Ela é rara, sim, mas não é uma aberração, um desvio evolutivo. Pelo contrário: ela é a mais arquetípica e genuína expressão da feminilidade, a eterna celebração do sagrado feminino. Ela está aí nas ruas, todos os dias. A mulher selvagem ainda sobrevive em todas as mulheres mas a maioria tem medo e a mantém enjaulada. Ela é o que todas as mulheres são, sempre foram, mas a grande maioria esqueceu.


Felizmente algumas lembraram. Foram incompreendidas, sim, mas lamberam suas feridas e encontraram o caminho de volta à sua própria natureza. Esta crônica é uma homenagem a ela, a mulher selvagem, o tipo que fascina os homens que não têm medo do feminino. Eles ficam um pouco nervosos, é verdade, quando de repente se vêem frente a frente com um espécime desses. Por isso é que às vezes sobem correndo na primeira árvore. Mas é normal. Depois eles descem, se aproximam desconfiados, trocam os cheiros e aí... Bem, aí a Natureza sabe o que faz.


Cazuza


















Boas Novas


Poetas e loucos aos poucos
Cantores do porvir
E mágicos das frases
Endiabradas sem mel
Trago boas novas
Bobagens num papel
Balões incendiados
Coisas que caem do céu
Sem mais nem porquê

Queria um dia no mundo
Poder te mostrar o meu
Talento pra loucura
Procurar longe do peito
Eu sempre fui perfeito
Pra fazer discursos longos
Fazer discursos longos
Sobre o que não fazer
Que é que eu vou fazer?

Senhoras e senhores
Trago boas novas
Eu vi a cara da morte
E ela estava viva
Eu vi a cara da morte
E ela estava viva - viva!

Direi milhares de metáforas rimadas
E farei
Das tripas coração
Do medo, minha oração
Pra não sei que Deus "H"
Da hora da partida
Na hora da partida
A tiros de vamos pra vida
Então, vamos pra vida

Senhoras e senhores
Trago boas novas
Eu vi a cara da morte
E ela estava viva
Eu vi a cara da morte
E ela estava viva - viva!


Edgar Allan Poe



















Para Annie

Graças a Deus! A crise,
o perigo passou!
O mal languidescente
afinal se acabou.
E essa febre chamada
vida se conquistou!

Tristemente me sinto
das forças despojado
e músculo algum posso
mover, assim deitado.
Mas que importa? Prefiro
ficar assim deitado.

E em meu leito descanso,
com tamanho conforto
que, ao ver-me, poderiam
imaginar-me morto;
talvez estremecessem,
como quem olha um morto.

Gemidos e lamentos,
suspiros e aflição agora se acalmaram,
com a palpitação
cruel no meu peito. Horrível
essa palpitação!

O mal-estar, a náusea,
a impiedosa agonia,
tudo se foi, com a febre
que a mente enlouquecia:
febre chamada vida,
que em meu cérebro ardia.

De todos os tormentos, o que mais amargura
cessou: o ardor terrível
da sede que tortura,
sede do rio naftálico
da Paixão vil e impura.
Oh! eu bebi de uma a'gua
que toda a sede cura!

Água que flui com um canto
que o ar de docúra inunda,
de uma fonte bem pouco
escondida e profunda,
de furna que no solo
quase não se aprofunda.

E, ah! nunca loucamente
se diga e seja aceito
que é sombrio o meu quarto
e apertado o meu leito,
pois nunca o homem descansa
em diferente leito.
Para dormir, deitai-vos
em semelhante leito.

Nele, a alma supliciada
dorme, sem dolorosas
recordações, não tendo
mais sauddaes das rosas,
das velhas inquietudes
de seus mirtos e rosas.

e, aqui jazendo, o espírito,
tão calmo e satisfeito,
crê que o cerca um mais santo
odor de amor-perfeito,
odor de rosmaninho,
misto de amor-perfeito,
de malva, do belíssimo
e puro amor-perfeito.

E assim feliz repousa,
mergulhado em perene
sonho de lealdade
e da beleza de Annie,
mergulhado nas ondas
das longas tranças de Annie.

Ela beijou-me e, terna,
acariciar-me veio.
E eu caí, docemente,
a dormir no seu seio.
Dormi profubdamente
sobre o céu de seu seio.

Cobriu-me, ao apagar-se
a luz no castiçal,
e orou para que os anjos
me livrassem do mal
e a Rainha dos anjos
me afastasse do mal.

E durmo em tal conforto,
agora no meu leito
(desse amor satisfeito)
que me acreditais morto.
E é tal o meu conforto
a repousar no leito
(seu amor no meu peito)
que me imaginais morto
e tremei, com trejeito
de quem contempla um morto.

Mas o meu coração
fulge mais que a perene
luz dos astros celestes,
pois fulgura por Annie
e se abrasa na chama
do amor de minha Annie,
só pensando na chama
do olhar de minha Annie.

Pedro Lyra





ANUNCIAÇÃO


Aqui, eu.

Neste mesmo lugar
tão diferenciado pela poesia da tua passagem.

Dentro de mim
meu coração bate tranqüilo,
meu sangue circula normalmente,
minha alma sabe que sou eu.



Lá fora
a lua espraia encanto pela terra,
o vento larga uma canção pelo infinito,
o mar enrola um apelo no silêncio.

Todos os elementos
seguem
cumprindo como sempre as suas funções.

Mas
aos poucos
o coração começa a bater como temendo,
o sangue começa a queimar dentro da espera,
a alma começa a me desconhecer.

Por quê?

Pode ser a lua que viola a sua rota.
Pode ser o vento que ultrapassa os horizontes.
Pode ser o mar que se estrangula além da terra.

Ou pode, simplesmente,
pode ser apenas, simplesmente, o espaço
que se abra – anunciando
a tua volta.

(Do livro Contágio - Poesia do desejo - 1993)

Gonzaguinha



Começaria tudo outra vez

Começaria tudo outra vez, se preciso fosse meu amor
A chama no meu peito ainda queima, saiba, nada foi em vão
A cuba-libre da coragem em minha mão
A dama de lilás me mechucando o coração
A febre de sentir seu corpo inteiro coladinho ao meu
E então eu cantaria a noite inteira
Como eu já cantei e cantarei
As coisas todas que já tive, tenho e sei que um dia terei
A fé no que virá e a alegria de poder olhar pra trás
E ver que voltaria com você
De novo a viver nesse imenso salão
Ao som desse bolero, a vida, vamos nós
E não estamos sós, veja meu bem
A orquestra nos espera, por favor
Mais uma vez, recomeçar...

Lô Borges


PURA PAISAGEM

Linda , como se fosse a terra, vista do espaço aberto ,
acho você tão linda que nem sei falar ...
Frágil , como se fosse neve, claro canal sereno
ou um luar de prata, na velha Amsterdã ...
ou pura paisagem do porto quando a tarde cai
te dou essa rosa , tão rosa como você vai
gota de orvalho na grama lá de Peckham Rye ...
Minha , pode ser minha dona, rambla de Barcelona
é um sol radiante , las puertas de Madrid ...
ou linda é Roma e vejo que você é mais
ainda mais linda que a chuva dos canaviais
tem a beleza das pedras e dos animais
Leve , folha que o vento leva jogo a minha vida ,
na linda promessa de ter seu amor .
Linda , como se fosse a terra vista do espaço aberto ,
acho você tão linda que nem sei falar ...
Frágil , como se fosse neve claro canal sereno
ou um luar de prata na velha Amsterdã ...
ou pura paisagem do porto quando a tarde cai
te dou essa rosa tão rosa como você vai
gota de orvalho na grama lá de Peckham Rye ...
Leve , folha que o vento leva, jogo a minha vida ,
na linda promessa de ter seu amor .

Stanislaw Ponte Preta




Os Vinicius de Moraes

Texto originalmente publicado na 4ª edição do livro Rosamundo e os outros, de Stanislaw Ponte Preta, editado pela Civilização Brasileira (1975)





Eu confesso a vocês que descobri o segredo do coleguinha jornalista, poeta, diplomata e teleco-tequista Vinicius de Moraes numa tarde em que ambos (não ambos os Vinicius, como ficará provado mais tarde, mas ambos: eu e ele) tomávamos umas e outras no Bar Calypso, num desses crepúsculos vespertinos de Ipanema que já baixam pedindo um chope.
Estávamos lá “entornando”, quando chegou minha hora de subir para Petrópolis:- Poetinha, eu vou me mandar – disse eu. Ele suspirou, ante a perspectiva de ter de ficar sozinho e desejou boa viagem. Eu entrei no carro e subi para Petrópolis, onde cheguei certo de que nenhum carro passara pelo meu na estrada. No entanto, parei na Avenida 15 da cidade serrana, manobrei o carro e coloquei na vaga indo tomar mais um na Confeitaria Copacabana. Quando entrei e olhei para as mesas, vi que um camarada me saudava lá de dentro: era Vinicius de Moraes. Foi nessa tarde - repito – que eu descobri que Vinicus era, pelo menos dois. Está claro que podem haver mais de dois. Duvido até que as múltiplas atividades de Vinicius (reparem que seu nome já é no plural para enganar os trouxas) possam ser realizadas só por dois deles. Acredito mesmo que haja uma meia dúzia de Vinicius: um para poesia, um para diplomacia, outro para samba, um quarto para jornalista e o resto para mulher. Desses, os mais assoberbados talvez sejam os últimos. Eu acho, outrossim, que sou o único ao qual Vinicius (não sei qual deles) deu a pala de que eles são uma equipe e não um homem, por isso fico rindo dos coleguinhas que disputam o privilégio de noticiar o Vinicius certo na hora exata. Os jornais de ontem, por exemplo, estavam muito pitorescos sobre Vinicius (todos os Vinicius). Em Última Hora a confreirinha jornalista Teresa Cesário Alvim, num esforço de reportagem, dizia: “Vinicius de Moraes anda a todo vapor, de uns tempos para cá. Tomou pressão em Petrópolis e desceu a serra carregado de idéias, jorrando inspiração para todos os lados. “ (Coitada da Teresa, não sabe que há Vinicius pela aí tudo.) Já o coleguinha Jacinto de Thormes, no mesmo dia, na mesma UH e talvez escrevendo à mesma hora, dizia: “O Senhor Vinicius de Moraes está fazendo uma temporada de repouso na Clínica São Vicente.” De fato, há um dos Vinicius que está repousando, o que explica as notícias tão desencontradas de dois colunistas, no mesmo jornal, no mesmo dia. No mesmo dia, aliás, o Carlos Alberto escrevia na sua coluna: “O poeta Vinicius de Moraes, ontem de madrugada, conversando no Restaurante Fiorentina.” É verdade. Vinicius estava lá no Fiorentina, numa roda batendo papo. Dezenas de testemunhas podem provar o que o Carlos Alberto disse. Estava também tomando oxigênio, na Clínica São Vicente, estava em casa com amigos, compondo sambas ao som do violão de Baden Powell, estava no Cine Alvorada, assistindo a “Morangos Silvestres” (o porteiro me disse que o Vinicius já assistiu à fita quatro vezes, mas é mentira. Vários Vinicius ainda não viram). Como, minha senhora? A senhora não acredita que Vinicius seja uma porção? Azar o seu, dona. Um dia ainda se fará um programa de televisão com Vinicius ao violão, acompanhando outro Vinicius que canta, junto com um quarteto vocal de Vinicius. Sem vídeo-tape. Quem tem razão é Tia Zulmira, quando diz que, se Vinicius de Moraes fosse um só, não seria Vinicius de Moraes, seria Vinício de Moral.

N.E. Stanislaw Ponte Preta é um fantástico personagem criado pelo jornalista carioca de mil braços Sérgio Porto [ 1923 – 1968 ]. Rosamundo e os outros é o terceiro título de uma série que ainda inclui Tia Zulmira e eu e Primo Altamirando e elas.

16 agosto 2006

Cecília Meireles





Noções






Entre mim e mim,
há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.
Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.

Cada lâmina arrisca um olhar,
e investiga o elemento quea atinge.
Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito

das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria existência,
e contemplei-a
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus,
isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...

Guimarães Rosa

Como devem ser duros os caminhos
quando a gente só pensa na volta.

Grilo








Ana Cris
Cris tá linda
Krishna linda
Cristalina

hare hama
hare hare

Fernando Pessoa





Não digas nada! Que hás-me de dizer?


NÃO DIGAS NADA! Que hás me de dizer?
Que a vida é inútil, que o prazer é falso?
Di-lo de cada dia a cadafalso
Ao que ali um dia vai morrer.
Mais vale não querer.
Sim, não querer, porque querer é um ponto,
Ponto no horizonte de onde estamos,
E que nunca atingimos nem achamos.
Presos locais da ida e do horizonte
Sem asas e sem ponte.

Não digas nada, que dizer é nada!
Que importa a vida, e o que se faz na vida?
É tudo um ignorância diluída.
Tudo é esperar à beira de uma estrada
A vinda sempre adiada.

Outros são os caminhos e as razões.
Outra a vontade que nos fará seus.
Outros os montes e os solenes céus.

Grilo



Concretismo

Ana ia,
Ana via
e queria
e ria
e ria
Anar quia.

(Grilo)

10 agosto 2006

J G de Araujo Jorge



















PRESSENTIMENTO


O fim do nosso amor, pressenti, na agonia das tuas próprias cartas, rápidas, pequenas...
Se eu tantas, com carinho imenso te escrevia, tão poucas me chegaram em resposta apenas.
Nas cartas que a sofrer, te mandei, as dezenas, adiava a realidade sempre, dia a dia, procurando iludir em vão as minhas penas muito embora eu soubesse o quanto me iludia!

Hoje... já não foi mais surpresa pra mim, dizes, (como quem tem piedade), que é melhor não continuarmos mais... E tens razão: é o fim...

Há muito eu esperava e pressentia no ar...
Chegou... que hei de fazer?... Foi bom... Seria pior se ele não viesse nunca... e eu ficasse a esperar...

J.G. de Araújo Jorge

Ana Cristina Souto




















Finjo Ser


Feliz e amaldiçoada
Nuvem e metáfora
Casta e cortesã
Aberta e fechada
Sã e bipolar

Solidária e indiferente
Mortal e reencarnada
Caça e predadora
Fêmea e Macho
Reservada e depravada

Libertária e enclausurada
Ninfa e hetera
Céu e inferno
Autoritária e submissa
Punhal e espada

Presente e passado
Anja e diabólica
Idônea e inescrupulosa
Enigmática e decifrada
Terra sólida e areia movediça

Flor e espinho
Cultuada e desacreditada
Luz e escuridão
Criança e anciã
Silêncio e trovão

Vinho e cachaça
Dolorida no prazer e prazerosa na dor
Água e óleo
Berçário e caixão
Mármore e pedra-sabão

Paz e guerra
Bíblia e Alcorão
Bálsamo e arsênico
Metal e plástico
Matéria e átomo

Oásis e deserto
Tinta e sangue
Carta e bilhete

Branca e negra
Humana e animal

Perfeita e amputada
Brisa e tufão
Abstêmia e alcoólotra

Livro e gravura
Muralha e telhado de vidro

Ana Cristina Souto e Ana Cristina César
Companhia e solidão
Viva e parasita
Fogo e fumaça
Carroça e avião

Moderada e exacerbada
Sincera e mascarada
Corajosa e covarde
Fadigada e incansável
Sereno e tempestade

Eu e você
Bússola e perdição
Concreta e abstrata
Princípio e fim
Secreta e poeta


Ana Cristina Souto


Florbela Espanca











A FLOR DO SONHO

A Flor do Sonho, alvíssima, divina,
Miraculosamente abriu em mim,
Como se uma magnólia de cetim
Fosse florir num muro todo em ruína.

Pende em meu seio a haste branda e fina
E não posso entender como é que, enfim,
Essa tão rara flor abriu assim!...
Milagre... fantasia... ou, talvez, sina...

Ó Flor que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?!...

Desde que em mim nasceste em noite calma,
Voou ao longe a asa de minh'alma
E nunca, nunca mais eu me entendi...

Ana Cristina Souto


Saudade



Não é a ausência dos ausentes
É a agonia de um suspiro doloroso.
É o torpor de trevas amortalhadas.
É um espectro que cavalga descontente;
aspirando o pó do caminho nebuloso,
num vago tropel de cortejo solitário,

Jaz em companhia ao seu cavalo de tróia;
tenta invadir o coração inusitadamente
e depois compreende o mal de ser serpente.
Escapar à vida,
quem da morte jamais voltou;
parece ter dentro de si, o inferno encarcerado.

Reprise de sombra e escuridão;
- cálice amargo de fel centrifugado.
- saudade é quase lepra e maldição!

Não me pergunte uma única vez o que é saudade;
jamais saberei responder a contento.
Será um horrível suplício?
Ou um castigo trazido do Olimpo
sob a ira de Zeus por desacatá-lo?

Ah incógnita maldita!

Ainda que eu traga no peito
a dor descomedida desse indecifrável enigma
só posso adiantar que nenhum punhal
é capaz de ferir nossa alma
assim,
- tão feroz e lentamente -

Apoteose única de dor;
formando crateras abismais
tocando a sinfonia da morte
convocando os soldados sepultados
que nos deixa à vigília dos fantasmas
e à espreita dos abutres.


09 agosto 2006

Mario Quintana Por Mario Quintana


( texto escrito pelo poeta para a revista Isto É de 14/11/1984 )




Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Há ! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai ! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas : ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a eternidade.
Nasci do rigor do inverno, temperatura : 1 grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro – o mesmo tendo acontecido a Sir Isaac Newton ! Excusez du peu.


Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que nunca acho que escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso ! sou é caladão, instrospectivo. Não sei por que sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros ?
Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de fármacia durante 5 anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico Veríssimo – que bem sabem ( ou souberam) , o que é a luta amorosa com as palavras.

Mario Quintana






Em 30 de julho comemorou-se 100 anos do nascimento de Mario Quintana e seus leitores acham que ele está escrevendo cada vez melhor. Não que tenham sido descobertos textos inéditos, mas sua popularidade cresce como se ele estivesse produzindo incessantemente, tal como ocorreu da estréia - nos anos 40, com o livro de sonetos A Rua dos Cataventos - até a sua morte, em 5 de maio de 1994.

Mario Quintana sempre viveu só, lutando para sobreviver de seus escritos, como cronista do Diário do Povo - jornal de Porto Alegre com o qual colaborou durante quase toda a vida -, como tradutor ou com seus livros. Nunca teve casa ou se casou, vivia em hotéis ou, como disse quando foi despejado de um deles que ia virar prédio de luxo: "Não tem importância, moro dentro de mim." Também não gostava de falar da vida pessoal. "Nasci em Alegrete, em 20 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão."

Acessível (como querem seus fãs) ou popularesco (como o vêem seus críticos), ele demorou para ter reconhecimento. Candidatou-se várias vezes à Academia Brasileira de Letras, mas nunca se elegeu. Ainda bem que, nesse item, tem a companhia do historiador Sérgio Buarque de Holanda. Fora do Rio Grande do Sul, seus poemas raramente integravam antologias escolares ou como exercícios didáticos, a exemplos de seus contemporâneos ou das letras da música brasileira, a partir dos anos 60. Neste caso, também sua popularidade aumentou, como atesta a Casa de Cultura Mario Quintana, que funciona em Porto Alegre, no prédio onde foi o Hotel Majestic, sua residência durante 12 anos. Hoje, a função da Casa é fornecer material didático e de pesquisa sobre o poeta. É o maior centro cultural de Porto Alegre, recebe 47 mil pessoas por mês. Muitos são estudantes da escola fundamental e média, que vêm conhecer Quintana; outros chegam atraídos pela programação variada de cinema, teatro e música que a instituição oferece; mas muitos turistas querem estar onde o poeta viveu, conhecer seus objetos pessoais e até respirar o mesmo ar que ele. "A maior curiosidade do público é quanto ao quarto dele", diz o diretor da Casa, Sérgio Napp, que assumiu o cargo em 1987. Ele dá conta das várias moradias que Quintana teve, sempre em hotéis, às vezes na dependência de mecenas, a não ser no fim da vida, quando o governo gaúcho passou a lhe pagar uma pensão. "Viveu aqui de 1968 a 1980 e, quando o hotel fechou, mudou-se para o Presidente, que também fechou. Então, o jogador de futebol Paulo Roberto Falcão o convidou a morar no Hotel Royal, de sua propriedade. Sua última residência foi o Hotel Porto Alegre, um apart perto dos lugares por onde ele passeava."


"O amor é quando a gente mora um no outro"
(Mario Quintana)

Pablo Neruda
















Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo:
"A noite está estrelada, e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo.
Ao longe alguém canta.
Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.

Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.
A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.

Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.
De outro. Será de outro.
Como antes dos meus beijos.

A voz, o corpo claro.
Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.

(Pablo Neruda)

Ana Cristina Souto




















No cume da noite


Rompo o tempo com uma canção de bolero
Persigo minhas presas como uma pantera faminta
Saboreio a caça com total serenidade
Converto meus anseios em fome saciada

Renego as memórias ancestrais
Venço o dia com o suor do meu cansaço
Glorifico cada instante como sendo o último passo
Concebo o mundo como um enigma decifrado

Evoluo com a idade do calendário
Experimento a insensatez da lúcida esperança
Distraidamente chuto as pedras do caminho
E desbravo horizontes com a minha peregrina jornada

Fujo de mim e esqueço inúmeras verdades
das sombras e das escuridões
Uma ilusão alada
Encorpora-se ao meu coração

Permaneço em repouso
Um cheiro de ervas inebria o luar
Escalo cumes para tocar as estrelas
E finco minha bandeira na noite devassada.


Ana Cristina Souto

Escuridão



"Bem aventuradas as Criaturas da noite, pois é delas o Reino da Escuridão"

Clive Baker

(Escritor, realizador de cinema, pintor e dramaturgo inglês)