16 fevereiro 2007

Grazzi Barreto

Foto: Margarida Delga
ProsaPoéticamorosa

O valor que me cabe nesse momento de delírio é o que preenche a tua existência em mim. Se fosses metade do que sou, ainda assim seria maior do que eu, pois as medidas que lhe vestem são superiores às incomensuradas peles de que disponho. Ah...que me falta para perder a compostura de ser somente eu, senão um elétron de arquitetura? Há riqueza sim, na servidão, a depender de quem serve e de quem é servido. És por acaso um deus revelado aos meus olhos desejosos, um que ao me ver na feiúra onerosa dos meus excessos, me sorri mesmo assim?A tua boca, a mais doce, tão completamente, que o alfabeto se torna pequeno em tua língua. Não, essa não é uma simples boca, é qualquer coisa entre um sonho interminável e a singularidade da natureza. Tanta salinidade faz-me pulsar tanto que paraliso, incoerentemente perdida no meu próprio templo. Um desejar tanto faz de mim uma tua. Um querer tanto assim, faz dessa tua, um bem. E maior bem do que o justo efeito da causa, não há...

Ana Cristina Souto

Foto: Anne Brigman


Enfim

Pelos privilégios de suprema covardia
estilhacei minha imagem 7 vezes:

lamúria dos espelhos!

Foi-se embora o reflexo do tempo
o ódio às rosas espinhetas
sufoquei todos os escaravelhos.

Então,
como se fosses
brilhe morno desse sol
dos ventos alísios
e infinitamente distante
à minha fronte
meus claustros olhos
não deteram-se
- aos teus cabelos de prata.

Tiraste-me todos os véus
dos grilhões de minha amargura.

Não importa que eu sejas a primeira;
basta-me ser tua última!

Dos teus rochedos
que ergueram minhas ruínas;
toquei as estrelas
- ou seria o dedo Dele?

Enfim, capte-me
sem tortura de êxtases;
nos ventos das canções nos trigais
ou na penumbra vilã desses instantes;
- das mãos que desvendam os segredos das almas.




José António Gonçalves


Vem

1

Vem. Imagina-te no centro de todas as viagens.
Traz o perfume de outras eras, dos dias felizes em que fomos
alguma coisa mais. Talvez crianças breves, pássaros
feridos por um amor com sede de infinito.

Lembra-me os invernos, os outonos com sabor a erva
e a folhas gastas pelo tempo. E abre-me as janelas
que me fechaste um dia. E deixa-me entrar como uma brisa
em busca dos teus olhos, soprando nos teus cabelos.

Mas vem. Cobre-te de névoa e de flores. Veste o céu azul
e os prados verdes. E sorri, no silêncio possível do reencontro.
Deixa-te cair, nua e leve, nas asas do vento,
como uma pétala de rosa sem destino,
uma bola mágica de sabão
reflectindo sonhos no espaço. E aconchega-te dentro de mim.

Mas vem, anjo de transparências, de mãos brancas e suaves,
fruto exótico das minhas miragens. Vem. Traz a pureza
dos campos, o som das ribeiras correndo pelas encostas,
o murmúrio da noite de encontro às madrugadas.


2

Vem, apenas. Como se o mundo estivesse acabando,
a cada passo que dás em busca do meu sonho. E depois
não houvesse mais nada. Só tu e eu, enlaçados em viagem,
sobrevoando todos os horizontes.

Mas vem. Vem. Vem sem perguntares pelo amanhã,
pelos abismos que se abrem nas fronteiras dos nossos corpos.
Vem apenas. Com a lucidez dos espelhos e a espuma
inquieta do mar, batendo no calhau da praia.

Vem, docemente, como um papagaio de papel-de-seda
em tardes de vento brando. E fala-me de fadas, de castelos,
de rios mansos, onde alguma vez pudemos navegar.
Mas diz-me coisas sobre as árvores e as casas. Ou leva-me
contigo, como se fossemos apenas aves e voássemos com
o mesmo bater de asas. Vem, ou deixa-me morrer
com a tua lembrança numa manhã cinzenta,
com as gaivotas gritando no cais
e os vagabundos repartindo o seu sono
com os meus pesadelos. Mas vem,
como se partisses para sempre
e me esquecesses
nas tempestades das invernias desta ilha
algures perdida no tempo.
Vem.


(in "Os Pássaros Breves", pgs. 31/32, Colecção "O Lugar da Pirâmide",
nº. 38, posfácio de João Rui de Sousa, Ed. Átrio, Lisboa, 1995)

05 fevereiro 2007

José Inácio Vieira de Melo


Epitáfio para Guinevere


Cavalos já foram pombos
de asas de nuvem.
Domingos Carvalho da Silva



Meus cavalos choram por ti, égua de olhos azuis.

Não mais invadirei o vento montado no teu galope.


Que fique inscrito na tua lápide

o verso de lágrimas dos meus cavalos.


Para tu, que trazias os céus dentro dos olhos,

o relinchar da paixão pagã

dos cavalos que trago dentro de mim.

Afonso Rommano de Sant' Anna

Poemas Para a Amiga

Fragmento 2


Eu sei quando te amo:

é quando com teu corpo eu me confundo,

não apenas nesta mistura de massa e forma,

mas quando na tua alma eu me introduzo

e sinto que meu sangue corre em ti,

e tudo que é teu corpo não é que um corpo meu que se alongou de mim.



Eu sei quando te amo:

é quando eu te apalpo e não te sinto,

e sinto que a mim mesmo então me abraço,

a mim que amo e sou um duplo,

eu mesmo e o corpo teu pulsando em mim.