23 dezembro 2006

Ana Hatherly


Quando a lua vier tocar-me o rosto


Esta noite morrerás.

Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e aquele que procurar a marca dos teus passos
encontra urtigas crescendo por sobre o teu nome.
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e uma gota de sangue ressequido
é a marca dos teus passos.
No coração do tempo pulsa um maquinismo ínscio
e na casa do tempo a hora é adorno.
Quando a lua vier tocar-me o rosto a tua sombra extinta marca o fim de um eclipse horário de uma partida iminente e o tempo apaga a marca dos teus passos por sobre o meu nome.
Constante.
O mar é isso.
A lua vir tocar-me o rosto e encontrar urtigas crescendo por sobre o teu nome.
O mar é tu morreste.
O mar é ser noite e vir a lua tocar-me o rosto quando tu partiste e no meu leite crescem folhas sangue.
A velocidade do sangue é tu partiste.
A febre é uma pira incompreensível como a aparição da lua e a opacidade do mar.
No meu leito a lua vai tocar-me o rosto e a tua ausência é um prisma, um girassol em panóplia.
Agora a lua chega devagar e o mar é leito de tu teres partido, uma infrutescência de eu procurar a marca dos teus passos por sobre o meu rosto.
A noite é eu procurar a marca dos teus passos.
Esta noite a lua terá um halo de concêntricas florações de gotas do teu sangue e a irisada sombra do meu leito é o teu rosto iminente.
A lua é uma seta.
Tu partiste é o silêncio em forma de lança.
Esta noite vou erguer-me do meu leito e quando a lua vier tocar-me o rosto

vou uivar como um lobo.
Vou clamar pelo teu sangue extinto.
Vou desejar a tua carne viva, os teus membros esparsos, a tua língua solta.
O teu ventre, lua.
Vou gritar e enterrar as unhas nos teus olhos até que o mar se abra e a lua possa vir tocar-me o rosto.
Esta noite vou arrancar um cabelo e com a tua ausência faço um pêndulo para
interrogar a lua por tu teres partido e a marca dos teus passos ser a razão mágica de a lua poder surgir de noite e urtigas crescerem no meu leito.
E se encontrar a marca dos teus passos vou crivar-lhe o coração de alfinetes
para que tu partiste seja a razão mágica de tu poderes morrer-te.
Quando a lua vier em forma de lança vai trespassar um pássaro para lhe ler nas entranhas a direcção tu partiste e a marca dos teus passos consiste nos olhos
abertos de um pássaro esventrado.
Ah, mas o luar é uma pluma do meu leito e a lua é o colo de tu morreste para
poderes enfim tocar-me o rosto.

06 dezembro 2006

Pablo Neruda

Reflexos de outono,Washington Maguetas, 1993
Soneto XXV

Antes de amar-te, amor, nada era meu
Vacilei pelas ruas e as coisas:
Nada contava nem tinha nome:
O mundo era do ar que esperava.
E conheci salões cinzentos,
Túneis habitados pela lua,
Hangares cruéis que se despediam,
Perguntas que insistiam na areia.
Tudo estava vazio, morto e mudo,
Caído, abandonado e decaído,
Tudo era inalienavelmente alheio,
Tudo era dos outros e de ninguém,
Até que tua beleza e tua pobreza
De dádivas encheram o
outono.

05 dezembro 2006

Ana Cristina Souto















Desencanto

Tua silhueta
ainda arranha minha retina.
Contigo
ignorei o futuro
vislumbrei apenas o preciso;
— um blefe do destino —

Que seja!

Atravessei meus espinhos,
perdi todas as defesas.
Hoje,
imune à dor
- refém de mim,
lastimo a insistência da vida.

Poderia ser tudo maior.
Sim! Poderia!
Mas era preciso muito...
muito mais!

Nessa paixão sem amanhãs;
- réstia de luz -
refletida nessa taça de cristal trincada.

Giselda Medeiros

Canção para buscar-te

Deixarei que o vento perpasse
o meu ser e dele retire
teu nome, teu gesto, teu vulto
para que eu possa respirar.

Deixarei que as estrelas roubem
teu brilho e em seu olhar azul
prenda-o, assim, verei luzir
uma outra vez o meu olhar.
E deixarei que o mar te alcance
com sua voz potente e rouca
para que eu possa ouvir em mim
a minha voz, já quase morta.

E deixarei que o tempo leve
a solidão que o teu silêncio
bordou nas fimbrias do meu ser,
naquela tarde que chovia,
E depois de tudo... ah! depois
quero ver minha alma cansada
ainda assim te procurar
sofregamente e nada, nada,
nada de ti reencontrar.

Talvez que sabe não te achando,
desesperada, e louca, e tonta,
se volta pra si, sonâmbula,
para encontrar-se, enfim, a sós.

Mas, como poderei achar-me
se não estiveres em mim?
Pois é no teu caminho vago
que traço o meu destino andante
de estrela, de rio, de vento,
margeando sempre a solidão.

Soares Feitosa


A Lágrima Súbita

Nenhuma grande chuva
jamais encheu
o mar;
nenhuma seca do Ceará conseguiu baixar
o nível das águas
deste mar-oceano;
logo,
esta lágrima súbita,
neste mar salgado, é inútil
como volume.


— De que medos tenho coisa?


Transito eu - ela disse - entre o abismo
e a lembrança;
que agora,
neste borrifo de espuma e brisa,
os escorridos da minha face me confundem:


— serão de mim,
serão do mar? —


— De que medos tenho eu?


Por que agora uma lágrima,
nascida num canto de minha face,
quando lágrimas
só as conheço de alegre?


Seria este azul de mar
profundo, fundo,
cheio, soturno,
a fonte obscura do meu terror?

Se eu chamar a reflexão,
aplacadas serão minhas aflições?


Ou, mais prudente clamar pelo sonho,
que prefiro imaginar, agora:

(optei pelo sonho,
claro que é sonho)

esta vontade de fugir
e cavalgar horizonte e brisa,
tanger os ventos no corcel dos meus cabelos,
navegar os azuis e céus na esquina de minha face
e quando gritar por lágrima,
venha, senhora lágrima,
eu quero
eu preciso chorar,

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e de surpresa,
quando olhar de lado,
é sonho, claro que é,
reencontrar,
no vento ligeiro,
a fuga dos teus olhos!?

Rubem Braga

Sonetos

E quando nós saímos era a Lua,
Era o vento caído e o amor sereno
Azul e cinza-azul anoitecendo
A tarde ruiva das amendoeiras.

E respiramos, livres das ardências
Do sol, que nos levara à sombra cauta
Tangidos pelo canto das cigarras
Dentro e fora de nós exasperadas.

Andamos em silêncio pela praia.
Nos corpos leves e lavados ia
O sentimento do prazer cumprido.

Se mágoa me ficou na despedida
Não fez mal que ficasse, nem doesse –
Era bem doce, perto das antigas.

Ana Cristina Souto

Areia Movediça


Tentar debater-me — sair de ti —
Afundaria mais e mais.

Assim —
Prefiro a inércia
a morrer soterrada,
sem o teu ar...

Chico Buarque

Embarcação


Sim, foi que nem um temporal
Foi um vaso de cristal
Que partiu dentro de mim
Ou quem sabe os ventos
Pondo fogo numa embarcação
Os quatro elementos
Num momento de paixão

Deus, eu pensei que fosse Deus
E que os mares fossem meus
Como pensam os ingleses
Mel, eu pensei que fosse mel
E bebi da vida
Como bebe um marinheiro de partida, mel

Meu, eu julguei que fosse meu
O calor do corpo teu
Que incendeia meu corpo há meses
Ar, como eu precisava amar
E antes mesmo do galo cantar
Eu te neguei três vezes
Cais,
ficou tão pequeno o cais
Te perdi de vista para nunca mais

Mais, mais que a vida em minha mão
Mais que jura de cristão
Mais que a pedra desse cais
Eu te dei certeza
Da certeza do meu coração
Mas a natureza vira a mesa da razão

Thiago de Mello












A fruta aberta

Agora sei quem sou.

Sou pouco, mas sei muito,
porque sei o poder imenso
que morava comigo,
mas adormecido como um peixe grande
no fundo escuro e silencioso do rio
e que hoje é como uma árvore plantada
bem alta no meio da minha vida.

Agora sei as coisas como são.
Sei porque a água escorre meiga
e porque acalanto é o seu ruído
na noite estrelada
que se deita no chão da nova casa.
Agora sei as coisas poderosas
que valem dentro de um homem.

Aprendi contigo, amada.
Aprendi com a tua beleza,
com a macia beleza de tuas mãos,
teus longos dedos de pétalas de prata,
a ternura oceânica do teu olhar,
verde de todas as cores
e sem nenhum horizonte;
com tua pele fresca e enluarada,
a tua infância permanente,
tua sabedoria fabulária
brilhando distraída no teu rosto.

Grandes coisas simples aprendi contigo,
com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,
com as espigas douradas no vento,
com as chuvas de verão
e com as linhas da minha mão.

Contigo aprendi que o amor reparte
mas sobretudo acrescenta,
e a cada instante mais aprendo
com o teu jeito de andar pela cidade
como se caminhasses de mãos dadas com o ar,
com o teu gosto de erva molhada,
com a luz dos teus dentes,
tuas delicadezas secretas,
a alegria do teu amor maravilhado,
e com a tua voz radiosa
que sai da tua boca
inesperada como um arco-íris
partindo ao meio e unindo os extremos da vida,
e mostrando a verdade
como uma fruta aberta.

(Sobrevoando a Cordilheira dos Andes, 1962)

04 dezembro 2006

Madre Teresa de Calcutá


El aborto es un homicidio en el vientre de la madre.
Una criatura es un regalo de Dios.
Si no quieren a los niños, dénmelos a mí.
A falta de amor é a maior de todas as pobrezas.

Ana Cristina Souto
















Recolha

Recolha aquelas palavras
o vinho entornado

a blusa amarrotada
o sorriso cínico

os sóis, as luas.

Recolha também as flores roubadas
os nossos mortos

livros de TAO
o lugar à mesa

o presente impune.

E a rede na varanda
a nossa canção

a xícara de café
toalha molhada

as mesmas mentiras...

Recolha-as!

- Não deixe vestígios de ti!

Os sonhos;
deixe-os por mim...

Virginia Woolf

Última carta a Leonard Woolf
Querido,

Tenho certeza de que estou enlouquecendo de novo. Sinto que não podemos passar por outra daquelas terríveis fases. E desta vez não ficarei curada. Começo a ouvir vozes, e não posso me concentrar. Assim, estou fazendo o que me parece melhor. Você me deu a maior felicidade possível. Não creio que duas pessoas pudessem ser mais felizes até chegar esta doença terrível. Não consigo mais lutar. Sei que estou estragando a sua vida e que sem mim você poderá trabalhar. E você vai, eu sei. Está vendo, nem consigo mais escrever adequadamente.

Não consigo ler. O que quero dizer é que devo a você toda a felicidade da minha vida. Você foi absolutamente paciente comigo e incrivelmente bom. Quero dizer isso — e todo mundo sabe. Se alguém pudesse me salvar, teria sido você. Perdi tudo, menos a certeza da sua bondade. Não posso mais continuar estragando sua vida.

Não creio que duas pessoas tenham sido mais felizes do que nós fomos.

Virginia Woolf



Virginia Woolf tentou ‘curar’ sua loucura pelo suicídio.
Em 28 de março de 2007, faz 66 anos que a escritora inglesa Virginia Woolf se matou.


Sobre sua vida, é possível saber alguma ou muita coisa, principalmente depois da sensível e abrangente biografia de Quentin Bell. Infelizmente, a autobiografia de Leonard Woolf ainda não foi traduzida para o português. Leonard foi a pessoa que mais entendeu Virginia. É provável que ela tenha escrito a maioria de suas obras porque teve o apoio firme do marido e amigo. Leonard sacrificou-se pelo talento de Virginia. Trata-se do sacrifício do menor talento pela afirmação do maior talento. O casamento sequer lhe proporcionou prazer sexual.



Ana Cristina Souto

Mistérios da Alma

Só serei tua numa condição:
Que sejas tua eterna amada!
Teu olhar só exilarás o meu
e nos momentos de crise conjugal
sejamos cúmplices de nossos espasmos.

Se por ventura, tu desejares entender a minha alma
lamentarei tudo que vivemos,
pois alma de mulher é - i n d e c i f r á v e l -
Sendo assim, para ti,
serei apenas um disfarce.

Não percamos a pureza infantil!
Não divaguemos o que seria impreciso.
Nos embriagaremos de absinto;
e me unificarei ao teu universo paralelo
como imperatriz do teu Amor.

Apenas aconchegue-me em teus braços;
minha morada,
espaço que farei minhas queixas;
é sempre neles que preciso estar
nos meus momentos de dor ou ternura.

Não importa o meu passado!
Importa apenas o momento presente.
Os tropeços dos meus caminhos
perderam-se nas areias duma ampulheta
- Há tempos rasguei as horas (in)vividas.

Meu amor! Não procure me entender.
Tenho TPM!Tomo ansiolíticos para dormir;
falo pelos cotovelos e ainda por cima,
não sei fazer café.

Para não termos tais conflitos extremos,
ame-me com todas as ilusões incalculáveis.
Olha-me e sinta-se mais perto da vida.
pois te amarei perdidamente
e te erguerei um pedestal colossal.

Não será em qualquer cama que nosso amor despojará...
Serão em lugares etéreos
que consumaremos nossa comunhão carnal
e te depravarei com meus enigmas de fêmea.

Vamos ficar mesmo nas entrelinhas de vãos pensamentos.
Não queiras saber de mim, que farei o mesmo por ti.
Apenas cubra-me com lençóis brancos
- desses guardados em baús de fantasmas -
e sigamos avante
com nossos amargos ou doces mistérios.

01 dezembro 2006

Ascendino Leite

Qualidade noturna

Noite cinza mas não suja.

Noite de homem, insenil,

senão que imaginoso,

tendendo ao viril,

ainda que só fitando o teto.

Ana Cristina Souto

















As Sardas Em Tuas Costas


Ah!

As sardas em tuas costas
minha Constelação de Órion;

- Impossível de contá-las -

E que me guiam
pela vastidão infinita
- do teu universo...

Antonio Mariano Lima















Existencialismo

Ele faz poesia
porque morre de medo
do tiro
no ouvido.


E se esquece
da extrema poeticidade
do suicídio.


Que tolo!


Que é então o poeta
senão um suicida
reincidente?


Soares Feitosa















Fishing Boat Caught In A Squall Off A Jetty: Andreas Achenbach - Germany: 1815 - 1910


Uma canção distante

Guardo tuas coisas para uma viagem
(em que tempo?),
.
em que vagão viajaremos — e as janelas:
abertas pr'uma paisagem verde...!?
.
Guardo tuas coisas para uma viagem,
(em que modo?):
.
no modo presente,

no modo advérbio, passado —
passam, passam coisas,

que os meus dedos aos lábios,

de uma mão perfeitamente trêmula,
cantam uma canção distante:
silêncio.

..
Guardo tuas coisas para uma viagem,
(em que vontades?):
.
pois se me fugiram os cavalos meus,
arrebentados todos os trens,
mortos os condutores de todos os carros,
naufragadas todas as jangadas,
.
e o mar,
brutalmente mar,
mesmo assim,
as coisas tuas guardadas, fiel —
(onde?):
.

navegar é possível.



Ana Cristina Souto














Naufrágio lunar


Sonhar às vezes, me faz bem.

Sonho e escrevo sob as estrelas

Cintilam-me as idéias;

- Quase singelas/

Quase afãs.


São faróis nos meus desatinos mais lúcidos.

Às vezes, têm um brilho incandescente

A retalhar-me o íntimo.

Outras, são minha luz no fim do túnel.

Algumas nada mais que o brilho de vaga-lumes


Não desejei amar os astros,

mas amei você!

Grande quimera!

Meus sonhos não te trazem a mim.

Eles me afastam de todos os planos.


Mas de certo, posso dizer:

- Ser estrela cadente no meu mundo terreno

Me traz a sorte de ter feito um pedido

e ter a nítida sensação de que ele foi atendido;

Se em vão,
eu não sei!
Mas me trouxe de volta a fortaleza
- de sinalizar outras naus.

Ana Cristina Souto


Encantos Naturais


Cinzas da tarde;

névoa que esfumaça.

Agora chuvinha fina...

E finjo que minto

quando me induz

ao inventar sons em teu corpo.

- Há em ti o tom -

roçar de teus pêlos

- Chocalhar de teus guizos;

Minha serpente.

E teus cabelos de tempestades!

- Encantos naturais...

Corpo sem censura,

que cobre meu ventre

sem nunca se fartar de ti

às emoções finais,

néctar gemido;

e me banha de gim,

Apesar da chuva...

Ana Cristina Souto

Hai Kai dos Teus Olhos


Os verdes dos teus olhos;

- Ah! O mar -

Que me desperta toda sede...


Elisabeth Barret Browning

Como te amo?
Como te amo? Deixa-me contar de quantas maneiras.
Amo-te até ao mais fundo, ao mais amplo e ao mais alto
que a minha alma pode alcançar
buscando, para além do visível dos limites do
Ser e da Graça ideal.
Amo-te até às mais ínfimas necessidades de todos
os dias à luz do sol e à luz das velas.
Amo-te com liberdade, enquanto os homens lutam
pela Justiça;
Amo-te com pureza, enquanto se afastam da lisonja.
Amo-te com a paixão das minhas velhas mágoase com a fé da minha infância.
Amo-te com um amor que me parecia perdido - quando
perdi os meus santos - amo-te com o fôlego, os
sorrisos, as lágrimas de toda a minha vida!
E, se Deus quiser, amar-te-ei melhor depois da morte.

Ana Cristina Souto



















Despedida

Esquivo-me
às tentativas predatórias
de tuas mãos.
Onde o meu inexato olhar
procura o que perdeu-se
em pistas falsas.

Tomo o rumo do teu disfarce;
Encontro natureza morta.
Sem chorar minha sorte,
tranco a porta.
Num travesseiro de espinhos,
sangro
- desfigurando minha face.

Em incontida aflição
bebo o amargor de todos os venenos
e aprisiono os meus versos
em canções que não compuz.

Engulo lágrimas - como palavras
que corrói a minha garganta.
E com o céu chorando / chuva
no silêncio dos meus passos
despeço-me do teu domínio
sem olhar para trás...








Italo Rovere




















No dia D


O poeta
A pó
Está
Adeus
Dará
A sua
Dor

Poeta
Adormecido
À Deus
Dará
O seu
Juízo

Qual a saída
Para essa nossa ída
Todos de uma vez
Para onde?
Talvez..
Não sei!
Não vejo
Outra saída
A não ser
Saber
Viver
A própria
Vida.

D...
No dia d
Não quero me perder
Não quero ser levado
Se não por você
Para o outro lado.

Ana Cristina Souto


O dragão-serpente, que devora a própria cauda, em grego "que devora la cola", constituindo um círculo,
na Fenícia e Grécia recebeu o nome de Uoroborus, que significa simbolicamente o universo e a eternidade.

Infindável


Meu amor por ti
de tão imenso
conflui-se com meus
pêlos e unhas;
que teimam em crescer
- involuntariamente –

Permanecendo assim

após

- a minha / à tua partida...

Virginia Woolf

(...) Neste ponto eu me deteria, mas as pressões da convenção o determinam que todo discurso deve terminar com uma peroração. E uma peroração dirigida às mulheres deve ter algo, voces hão de convir, de particularmente exaltador e nobilitante. Eu lhes imploraria que se lembrem de suas responsabilidades, que sejam mais elevadas, mais espirituais; eu lhes lembraria quanta coisa depende de vocês e que enorme influência podem exercer no futuro. Mas essas exortações, penso eu, podem ser tranqüilamente deixadas a cargo de outro sexo, que as colocará, e a rigor as tem colocado, com muito maior eloqüência do que posso alcançar. Quando vasculho minha própria mente, não encontro sentimentos nobres sobre sermos companheiras e iguais e influenciarmos o mundo para fins mais elevados. Descubro-me dizendo, breve e prosaicamente, que é muito mais importante se ser o que se é do que qualquer outra coisa. Não sonhem influenciar outras pessoas, eu diria, se soubesse fazê-lo de forma mais brilhante. Pensem nas coisas como são.

E mais uma vez vem-me à lembrança, mergulhando em jornais e romances e biografias, que, quando uma mulher fala com mulheres, deve ter algo muito desagradável escondido na manga. As mulheres são duras com as mulheres. As mulheres não gostam das mulheres. As mulheres - mas será que voces não estão completamente fartas da palavra? Garanto-lhes que eu estou. Concordemos, então, em que um artigo lido por uma mulher para mulheres deve terminar com algo particularmente desagradável.

Mas como é isso? Em que posso pensar? A verdade é que freqüentemente gosto das mulheres. Gosto de sua informalidade. Gosto de sua inteireza. Gosto de seu anonimato. Gosto... Mas não devo prosseguir desta maneira. Aquele armário lá... Vocês dizem que ele contém apenas guardanapos limpos, mas e se Sir Archibald Bodkin estiver escondido entre eles? Permitam-me então adotar um tom mais severo. Ter-lhes-ei eu, nas palavras precedentes, transmitido suficientemente as advertências e a exprobação da humanidade? Falei-lhes sobre o conceito muito baixo em que as tinha o Sr. Oscar Browning. Mostrei o que Napoleão pensou de vocês em certa época e o que Mussolini pensa agora. Depois, para o caso de alguma dentre vocês aspirar à ficção, transcrevi para seu bem a recomendaçãoo do crítico sobre reconhecerem corajosamente as limitações de seu sexo. Referi-me ao Professor X e dei destaque a sua afirmação de que as mulheres são intelectualmente, moralmente e fisicamente inferiores aos homens. Transmiti-lhes tudo o que veio a mim sem que eu procurasse, e aqui está uma advertência final, do Sr. John Langdon Davies. O Sr. John Langdon Davies adverte as mulheres de "que quando as crianças deixam de ser inteiramente desejáveis, as mulheres deixam de ser inteiramente necessárias". Esspero que vocês tomem nota disso.

Como posso incentivá-las mais a empreenderem a tarefa de viver? Minhas jovens, diria eu, e tenham a bondade de prestar atenção, pois a peroração está começando, voces são, a meu ver, vergonhosamente ignorantes. Nunca fizeram uma descoberta de qualquer importância. Nunca sacudiram um império ou levaram um exército à batalha. As peças de Shakespeare não são de sua autoria, e vocês nunca apresentaram uma raça de bárbaros às bençãos da civilização. Qual é sua desculpa? É muito fácil vocês dizerem, apontando para as ruas e praças e florestas do globo fervilhando de habitantes negros e brancos e cor de café, todos extremamente ocupados com o tráfego e as empresas e o fazer amor, que estivemos ocupadas com outro trabalho. Sem nosso trabalho, esses mares não seriam navegados e aquelas terras férteis seriam um deserto. Geramos e alimentamos e lavamos e instruímos, talvez até os seis ou sete anos de idade, o bilhão e seiscentos e vinte e três milhões de seres humanos que, segundo as estatísticas, existem atualmente, e isso, mesmo admitindo que algumas de nós tenhamos tido ajuda, leva tempo.
Há uma certa verdade no que vocês dizem, não o nego. Mas, ao mesmo tempo, permitam-me lembrar-lhes que existem pelo menos duas faculdades para mulheres na Inglaterra desde o ano de 1866; que, a partir do ano de 1880, a mulher casada foi autorizada, por lei, a possuir sua própria propriedade; e que em 1919 - e já se vão aí nove anos inteiros! - ela obteve o direito de voto. Será que posso também lembrar-lhes que a maioria das profissões está aberta a vocês há quase dez anos? Quando refletirem sobre esses imensos privilégios e sobre a extensão de tempo em que eles vêm sendo desfrutados, e sobre o fato de que deve haver, neste momento, umas duas mil mulheres capazes de ganhar mais de quinhentas libras por ano de um modo ou de outro, voces hão de concordar que a desculpa da falta de oportunidade, formação, incentivo, lazer e dinheiro já não se aplica. Além disso, os economistas têm-nos dito que a Sra. Seton teve filhos demais. Vocês devem, é claro, continuar a ter filhos, mas como dizem eles, aos dois e aos três, e não às dezenas e às dúzias.

Assim, com algum tempo em suas mãos e algum conhecimento livresco na cabeça - voces já tiveram o bastante do outro tipo e, em parte, suspeito de que estejam sendo enviadas à universidade para serem desinstruídas -, sem dúvida ingressarão num outro estágio de sua carreira muito longa, muito laboriosa e altamente obscura. Milhares de penas estão prontas para sugerir-lhes o que devem fazer e que efeito terão. Minha própria sugestão é um pouco fantástica, admito; prefiro, portanto, colocá-la em forma de ficção.
Disse-lhes, no transcorrer deste ensaio, que Shakespeare teve uma irmã; mas não procurem por ela na vida do poeta escrita por Sir Sidney Lee. Ela morreu jovem - ai de nós! Não escreveu uma só palavra. Ela está enterrada onde os ônibus param agora, em frente ao Elephant and Castle. Pois bem, minha crença é que essa poetisa que nunca escreveu uma palavra e que foi enterrada numa encruzilhada ainda vive. Ela vive em vocês e em mim, e em muitas outras mulheres que não estão aqui esta noite, porque estão lavando a louça e pondo os filhos para dormir. Mas ela vive; pois os grandes poetas nunca morrem, são presenças contínuas, precisam apenas da oportunidade de andarem entre nós em carne e osso. Essa oportunidade, segundo penso, começa agora a ficar a seu alcance conferir-lhe. Pois minha crença é que, se vivermos aproximadamente mais um século - e estou falando na vida comum que é a vida real, e não nas vidinhas à parte que vivemos individualmente - e tivermos, cada uma, quinhentas libras por ano e o próprio quarto; se tivermos o hábito da liberdade e a coragem de escrever exatamente o que pensamos; se fugirmos um pouco da sala de estar comum e virmos os seres humanos nem sempre em sua relação uns com os outros, mas em relação à realidade, e tb o céu e as árvores ou o que quer que seja, como são; se olharmos mais além do espectro de Milton, pois nenhum ser humano deve tapar o horizonte, se encararmos o fato de que não há nenhum braço em que nos apoiarmos, mas que seguimos sozinhas e que nossa relação é para com o mundo da realidade e não apenas para com o mundo dos homens e das mulheres, então chegará a oportunidade, e o poeta morto que foi a irmã de Shakespeare assumirá o corpo que com tanta freqüência deitou por terra. Extraindo sua vida das vidas das desconhecidas que foram suas precursoras, como antes fez seu irmão, ela nascerá. Quanto a ela chegar sem essa preparação, sem esse esforço de nossa parte, sem essa determinação de que, quando nascer novamente, ela achará possível viver e escrever sua poesia, isso não podemos esperar, pois isso seria impossível. Mas afirmo que ela viria se trabalhássemos por ela, e que trabalhar assim, mesmo na pobreza e na obscuridade, vale a pena.

outubro de 1928

Um Teto Todo Seu - Ed. Nova Fronteira / Trad. Vera Ribeiro

Ana Cristina Souto

Venus Dormindo (1944), de Paul Delvaux.















C´est la Vie


Quando te vi a vez primeira
já o tinha em meus olhos;
teu perfume, essência inconfundível,
inebriava-me as entranhas.

Teu olhar
azul-violeta,
tal a calmaria do mar
após uma noite de tormenta.

O encanto flutuava pelo espaço sideral
à luz do luar — descalços e bêbados
balbuciávamos palavras etéreas

Eu, distraída
dispersei o teu fascínio em mim
em breves instantes de arrebatamento.

A paz morta pelo ciúme,
encruzilhadas... Desencanto.
Ansiosa minha alma te reclamava.

Ah! Fosse meu o teu último alento!

Tua lembrança ...
surges nos lampejos
como um astro desponta no firmamento

Eu te perdi!
e recrimino a delinqüência quase juvenil.

Ah! Mas o triunfo do tempo...

Queria dar-te mais que poesia
mas foste por atalhos
e me restou dorida consolação.
Hoje te dou meu lamento;
estendo-te a mão, em cumprimento banal.

E te foste como se vão os dias
longos e enfadonhos de inverno;
e vivi tantas vidas!
Em vão!

Obsessão!

Fecho os olhos
para não ver teu rosto
perpetuado em outros rostos.

Inútil!

Vejo-te com teus olhos de mar
e teu perfume mediterrâneo
até no silêncio dos meus sonhos.